Cristo e Buda - Jean-Yves Leloup e Lama Padma Santem
Jean-Yves Leloup - Quando um homem se encontra em um quarto
escuro, ele precisa abrir todas as janelas. A janela que se dá para o Oriente e
a que se dá para o Ocidente. Nós precisamos de todas as luzes. E hoje em dia,
mais que em qualquer época, precisamos da Luz do Buda, e da Luz do Cristo.(...)
O que veremos aqui, não se trata da relação entre Jesus e
Buda, mas entre Cristo e o Buda.
Tanto na tradição cristã como na tradição budista, nós
fazemos a distinção entre três corpos.
Temos o corpo histórico, Nirmanakaya - é o corpo e a
história de Jesus de Nazará. Que podemos comparar ao corpo e a história de
Sidharta Gautama da tribo de Sakyamuni.
Além deste corpo histórico e deste corpo transfigurado, ou
desperto, existe o corpo essencial, o Dharmakaya, que na tradição cristã
falaremos do Logos, do Verbo, da Luz pela qual tudo existe.
É importante nos lembrarmos destes três corpos, ou dessas
três dimensões, porque muitas vezes comparamos aquilo que não é comparável: O
corpo histórico de Jesus, com a Budeidade, ou estado de Clara Luz; ou o corpo
histórico de Buda, com o Logos, o Verbo, dizendo que Jesus é Deus e que o Buda
não passa de um homem. Nesse caso, estamos comparando níveis de realidade que
não são comparáveis.
É interessante vermos qual era a vida de Jesus de Nazaré, e
a vida de Sidharta Gautama da tribo de Sakyamuni. Veremos que são duas vidas
bastante diferentes, seja num contexto geográfico, seja num contexto religioso
- o mundo judeu para Jesus e o mundo hindu para Sidharta, e vermos como cada um
interiorizou essas duas tradições, e por vezes entrando em conflito com
representantes de ambas as tradições. Então, comparamos dois seres históricos.
Um que terá uma vida curta e cujo final será dramático, e outra que é uma vida
longa, cujos ensinamentos poderão ser transmitidos a muitas e muitas pessoas.
Do ponto de vista histórico, Jesus e Sidharta não se assemelham muito.
Mas, ao nível do seu corpo de ensino, do seu corpo de
doutrina, isto é, quando Cristo fala através de Jesus ou quando é o estado
desperto que se expressa através de Sidharta, veremos que tanto um quanto o
outro, buscaram o despertar de todos os seres vivos, a salvação e a libertação
de todos os seres vivos, e aí poderemos ver que seus ensinamentos como
complementares, como havia dito, nós precisamos de todas as luzes.
Quando S.S. Dalai Lama, fala sobre os ensinamentos do Buda -
Purifique seu coração - nós poderemos encontra muita ressonância com a tradição
do evangelho.
Quando nos situamos no nível último, quando falamos de Jesus
enquanto o Logos, o Verbo, como a natureza que dá existência a todas as coisas,
esta Clara Luz original, e quando falamos do Buda enquanto Budeidade, neste
momento estamos além de todas as comparações.
A Fonte da realidade é a Fonte da realidade. Não existem
duas realidades, mas existem infinitas maneiras de expressá-la. A Fonte é Uma.
Quando falamos de Jesus e de Sidharta, estamos comparando
dois seres históricos; quando falamos de Cristo e de Buda, estamos falando de
dois seres históricos habitados um pela Budeidade e outro pelo Logos, pelo Verbo;
e quando falamos da Realidade Última tanto do Cristo, quanto de Buda, então
entramos no silencio, esta Luz Original que está na Fonte dessas duas
aparências, dessas duas grandes janelas, através das quais, a Luz do Despertar,
a Luz do Vivente nos é transmitida.(...)
Continue lendo...
Lama Padma Santem - Este é um momento muito privilegiado
para conversarmos sobre esses três corpos do Buda, três corpos do Cristo.
Acredito que muitas pessoas tem esta intuição que nós temos essa natureza
Crística, que podemos falar dessa natureza Crística, que podemos acessar, do
mesmo modo que no budismo a Natureza Búdica - Todos os seres por natureza, são
Budas. O fato que nós temos uma natureza Búdica, nos torna capazes de
reivindicar, de poder viver isso, já que é nossa própria realidade.
É como se nós já estivéssemos no céu, a realidade é uma
realidade espiritual. E nossos olhos ficam toldados por Avidya - pela
incapacidade de ver; e quando perdemos a capacidade de ver, surge o mundo
comum. Esse mundo comum é uma experiência de mundo, ele não é mundo real, ele é
uma experiência de mundo; esse mundo comum, não impede que continuemos
conectados, que continuemos vivendo essa essência que é a natureza Búdica.
Surge então, dentro do Samsara, que é o mundo ilusório, o mundo de sonho,
surgem as identidades construídas dentro da perda da visão. Quando nós perdemos
a visão, surge a sensação de que nós somos esse veículo de manifestação dentro
do Samsara. A superação da visão do Samsara e da visão limitada, com respeito a
nossa própria identidade, é a purificação que nos permite mais adiante
reconhecer essa extensão ampla que é a nossa condição natural.(...)
Naturalmente essa natureza Búdica tem três dimensões
extraordinárias. O primeiro aspecto extraordinário é o fato de que essa
natureza búdica está além do tempo e do espaço, portanto além de todos os
ciclos de morte e renascimento; quando falamos de mortes e renascimentos
estamos falado dentro da linguagem e da limitação do Samsara, do mundo da
ilusão, onde nossa visão não alcança. O próprio Buda dizia: Para proveito
daqueles que não tem visão, eu falo das mortes e renascimentos. Para proveito
daqueles que são capazes de entender, eu falo do não-nascimento e não-morte.
Quando ele se aproxima do final da sua vida, ele diz: Eu
manifestei um corpo de sonho para benefício de seres de sonho, imersos em
sofrimentos de sonho. Eu não vim e não vou.
Essa é a visão a partir de Dharmakaya, da própria essência
da compreensão da natureza de Buda.
Quando Buda ultrapassa a ignorância, quando ultrapassa a
incapacidade de ver, aí ele se torna um Buda, esse é o ponto. Ele passa a
utilizar aquilo que naturalmente ele é, e que mesmo quando ele está submetido,
quado as pessoas estão submetidas a limitação da visão, elas continuam sendo
isso, elas apenas não sabem. (...)
Este primeiro corpo extraordinário, esse corpo que está além
da vida e além da morte, além de nascimento e além de morte, além do tempo,
além do espaço.(...)
Nós criamos uma sensação de localidade, muito embora não
seja real, nós facilmente criamos ambientes artificiais como se eles fossem
sólidos. Um exemplo desse ambiente artificial que parece sólido, é o avião.
Se estamos dentro de um avião, e temos uma pessoa sentada ao
nosso lado que está em pânico, essa pessoa tem um senso de realidade maior que
o nosso.. (risos...) A gente se levanta do avião, se espreguiça, se estende,
sente o elemento terra debaixo dos nossos pés, ( risos...) e o elemento terra é
de sonho também... Eventualmente a pessoa vai no banheiro, e tudo funciona, normal,
todos os elementos funcionando, dentro de um ambiente de
sonho...(risos...) A gente volta e senta
ao lado de uma pessoa em pânico, e aí dizemos a ela: Não se preocupe, fique
tranquila, estou aqui com você, me dê a mão.. ( risos...) A nossa perturbação
cria ambientes sutis. Dar a mão um para o outro pode ser que passe..( risos..)
não é incrível isso? ( risos...)
Então, esse ponto é como se fosse uma janela, pode ser que a
gente descubra que as realidades tem por base esse espaço muito amplo, e que o
espaço, e que o espaço e o tempo, e a localização, elas pertencem ao mundo
ilusório, pode ser que nos demos conta disso...
O Buda, quando olha com esses olhos, eu diria também Cristo,
naturalmente, quando ele olhar com esses olhos, ele terá compaixão dos seres.
Porque os seres não entendendo aquilo que ultrapassa todas as mudanças, todas
as transições, eles não entendendo aquilo que está além de vida e morte, eles
naturalmente vão sofrer as circunstâncias de vida e morte; e assim, tanto Buda
quanto Cristo manifestam essa compaixão, a entrega total em socorrer os seres,
em ajudá-los.
Este aspecto é um aspecto bastante interessante, nós
poderíamos pensar que é um aspecto que brota do personagem, de Jesus ou do
próprio Sidharta, que a compaixão seria um atributo de 'alguém'. Mas a
compaixão é um atributo dessa natureza silenciosa e ampla. Isso é um corpo
extraordinário. Dessa compaixão brotam todos os Budas.
Naturalmente dentro de uma perspectiva budista, brotam todos
os profetas de todas as tradições, brotam todas as emanações divinas de todas
as tradições.
Que outra fonte haveria que não essa?
Naturalmente, nós temos uma fonte, e dessa fonte brotam
todos os níveis de compaixão e lucidez, com certeza.
Meu mestre, S.S. Dalai Lama, também usava esse exemplo:
diferentes tradições, trazem como em uma grande festa de família, trazem um
prato e colocam sobre uma mesa; e todos nós compartilhamos daquilo. Cada um
trás a sua especialidade, trás o seu melhor método, trás sua melhor
contribuição.
Todas essas contribuições, na verdade, elas brotam desse
mesmo estado sutil, que é estado compassivo e amoroso que busca trazer
benefícios a todos os seres. Poderíamos pensar: de onde vem esse estado
compassivo, lúcido, amoroso, que se dedica ao benefício dos seres? Este seria o
segundo corpo extraordinário, nós não conseguimos localizá-lo, mas ele existe.
Esse corpo é realmente de grande importância, nós podemos vê-lo funcionando de
todos os lados. (...)
Quando as pessoas compassivas morrem, nós não precisamos nos
preocupar porque a compaixão não morre. A compaixão é uma manifestação dessa
dimensão sutil, que também não nasce e não morre. Ela vem dessa região do
silencio, dessa região lúcida, profunda, ela está disponível. É justamente a
compaixão e o amor que nos permitiram chegarmos ao ponto de estarmos aqui hoje
nessa sala. Nós tivemos pais e mães que nos cuidaram. Quando pensamos que a lei
do mundo é a economia, precisamos entender que não é. A lei do mundo é compaixão
e amor. Nós não estamos aqui pela força da economia, estamos aqui pela força da
compaixão, e do amor dos seres que nos cuidaram. Eventualmente eles usam
recursos econômicos, mas na verdade o que move, que moveu a eles para nos
cuidar, foi fundamentalmente compaixão e amor.
O que nos move para cuidar dos nossos filhos - a fundo perdido... (
risos.. ) perdido mesmo, é justamente compaixão e amor.
Precisamos ver que compaixão e amor ultrapassa as pessoas,
ultrapassa as manifestações.(...)
Os grandes mestres, eles passam, Jesus passa e ainda a
compaixão segue. Não é maravilhoso? É como se eles trouxessem a possibilidade,
a realidade da compaixão e do amor. Mesmo que eles passem, a compaixão e o amor
se tornam mais vivos, eles se espalham pelos seres. Nós podemos manifestar essa
dimensão. Então esse é o segundo corpo. Um corpo extraordinário ele tem
conteúdo, ele tem movimento, ele tem capacidade de transformação das
realidades, e ao mesmo tempo, ele não passa no tempo, ele não tem nascimento
nem morte.
Aí surge o terceiro corpo, o corpo que por vezes podemos
pensar que seja o corpo grosseiro, o Nirmanakaya no budismo, o corpo de forma.
Esse corpo de forma ele tem nascimento, vive por um período e ele cessa. No
entanto, em algumas vezes, nós podemos reconhecer em Nirmanakaya o corpo mais
sutil. (...) De modo geral nós dizemos que Dharmakaya é o corpo mais elevado.
Porém se nós compreendermos Nirmanakaya nós vamos entender como é raro, como é
extraordinário o fato de que o Buda, o Cristo, puderam manifestar essa natureza
de compaixão e de amor em meio as condições comuns no mundo. Em meio às
condições onde existe nascimento, vida e morte. Onde existe todo tipo de
frustrações, onde existe um engano completo na mente das pessoas.
Quando nós falamos de Samsara, essa palava talvez ela seja
insuficiente para nós nos darmos conta da extensão disso. Samsara é como se
fosse um único mundo. No entanto, se vocês olharem com cuidado, todos nós temos
'bolhas' de realidades pessoais, nós
temos mundos pessoais, segundo os quais nós olhamos todas as coisas. E mais do
que isso, esses mundos pessoais que configuram as realidades ao redor, eles não
são únicos, eles são variados. Nós podemos ter mundos familiares, mundos
profissionais, mundos relacionais variados; nós podemos ter um 'borbulhar', que
é o mais comum, ou seja, nós borbulhamos por dentro de realidades de modo quase
aleatório. A nossa mente opera de modo desconecto, aleatório, vagueante; somos
invadidos por realidades, e pensamos de um modo e de outro, depois pensamos de
modo diferente, e não encontramos uma solidez em meio a esse movimento todo.
Então, é muito extraordinário que surja alguém que seja
capaz de se movimentar de modo destemido, sem tremor, lúcido.
É por isso que dizem: Buda veio e foi; quando ele vai ele
retorna ao âmbito de Dharmakaya e se dissolve.(...)
Os mestres atuais estão acima dos Budas. Os Budas foram, os
mestres estão aí; É por isso do Nirmanakaya, a importância da lucidez se
apresentando num corpo mortal. Porque é através de um corpo mortal é que se
pode acessar e trazer benefícios às pessoas.(...) A maior parte de nós, precisa
ser socorrido por alguém que olhe para nós e nos entenda no nosso próprio
mundo, que é a chamada sabedoria do espelho, e tenha uma relação de identidade
conosco, a sabedoria da igualdade, ou seja, o que acontece conosco importa para
essa pessoa, isso é extraordinário.
O Buda olha para uma pessoa, e o que se passa com aquela
pessoa interessa ao Buda, isso é extraordinário. Ele é capaz de entender a
pessoa no seu mundo, do mesmo modo Cristo; além do mais, mesmo que ele penetre
na realidade limitada do outro, ele não perde a lucidez, ele não dá um sentido
de absoluto àquilo que é relativo. É como um médico, que é capaz de observar
todos os sintomas da doença, mas ele não olha para a pessoa pela doença, ele
olha pela saúde, e ele é capaz de conduzir a pessoa para a saúde.
É muito extraordinário que alguém tenha desenvolvido essa
capacidade de olhar para o outro e não se contaminar pela doença do outro, mas
ver o outro na sua saúde, mesmo em meio aos sintomas da doença, isso é o que se
chama sabedoria discriminativa.
Por outro lado, tanto Cristo quanto Buda, como Nirmanakayas
eles manifestaram a capacidade de localizar claramente o que são ações que vão
produzir sofrimento e complicações adicionais. E eles aprendem e ensinam
claramente como ações positivas podem ser feitas, que vão produzir resultados
positivos. Eles criam caminhos que ajudam as pessoas a andar, mesmo que as
pessoas não tenham ainda acesso à sabedoria. Eles criam processos, criam
caminhos.
Além do mais, dentro do que chamamos de sabedoria de
causalidade, eles manifestaram a capacidade de não serem contaminados nem mesmo
por agressões. Cristo é um exemplo maravilhoso, um exemplo extremo disso. O
Buda também; ele foi perseguido em várias ocasiões, foi atingido, alvejado em
diferentes momentos, e em nenhum momento ele perdeu a capacidade de beneficiar
os seres que o atingiram; isso é chamado de sabedoria da causalidade. Não
exercer ações negativas, exercer ações positivas, e conseguir transformar a
negatividade que é colocada sobre ele em benefício para o próprio agressor,
especialmente, e aí vêm a quinta sabedoria, eles foram capazes de manifestar
uma inabalável serenidade da sua identidade, com a natureza que está além de
nascimento, vida e morte; uma serena conexão que simplesmente não precisa de
nenhum esforço, pois ela está estabelecida. Isso é chamado de sabedoria de
Dharmata, a compreensão do aspecto último da realidade.
Ambos manifestaram aquilo que é chamado de sabedoria de
Vajrasattva, ou seja, todas as manifestações, tudo o que surge, nós podemos
utilizar como caminho, como um ponto especial, a partir do qual nós vemos o que
há de mais elevado; nós podemos utilizar o ponto onde nós estamos onde nós
estamos, seja ele um ponto de sofrimento, ponto de alegria, ponto de
felicidade, ponto de temor, nós podemos utilizar seja qual for a manifestação
como ponto privilegiado para nós olharmos a natureza primordial."
Jean-Yves Leloup e Lama Padma Santem em Buda e Cristo -
Palestra na Academia Brasileira de Letras - Rio de Janeiro Jan/2013
Fonte da Publicação: http://ventosdepaz.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário