A COMPAIXÃO NA SENDA DA ESPIRITUALIDADE
Excerto do livro Na Senda da Espiritualidade
Autores: José Caldas e Maria Carmelo
O termo “compaixão” começou a ser popularizado enquanto
conceito espiritual sobretudo através da divulgação do Budismo no ocidente.
Este conceito, por vezes confundido com a noção cristã de “piedade”, é um dos
pilares fundamentais da filosofia budista. Ele sugere que, independentemente
das diferenças externas e acidentais entre os seres, eles partilham um objetivo
comum – a busca da felicidade e a fuga ao sofrimento.
Qualquer ser vivo, racional ou irracional, busca
instintivamente aqueles dois objetivos e é neste contexto que se insere a noção
de compaixão. Um ser compassivo é aquele que reconhece em todos os seres vivos
a mesma natureza única e essencial que os impele a evitar o sofrimento, físico,
psicológico ou moral e a procurar a felicidade. Este impulso básico e
instintivo é algo de fundamental a todos os seres, algo que se encontra
inscrito na sua genética mais profunda.
É evidente que, uma vez mais se impõe aqui a prática da
discriminação inteligente. Será que não deveremos sancionar os prevaricadores
para não os fazer sofrer? Não deveremos contrariar os nossos filhos para não se
sentirem traumatizados? Todo o sofrimento que aqui referimos é aquele que
deriva da injustiça ou do egoísmo pessoal.
Ninguém tem o direito de infligir sofrimento apenas por
conveniência, negligência ou maldade pessoal. Mas, por vezes, esse mesmo
sofrimento é inevitável como reparação e equilíbrio de injustiças ou como forma
de amadurecimento da personalidade. O que é fundamental é que todas as acções
assentem numa preocupação genuína de equilibrar, educar e ajudar. Se assim
fizermos, acabaremos inevitavelmente por tratar todos os seres vivos como
gostaríamos de ser tratados.
E chegamos aqui à famosa “Regra de Ouro” da espiritualidade.
Desde a Antiguidade profunda, a Regra de Ouro tem sido uma referência moral constante.
Pensadores e Mestres de todos os tempos ensinaram esse princípio, chamado “de
ouro” para indicar a sua posição central e privilegiada como regra fundamental
de vida.
“Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti” ou
“Faz apenas aos outros o que gostarias que te fizessem a ti” são duas versões
desta famosa máxima universal. Repare-se, a partir dos exemplos seguintes,
como, na verdade, ela tem sido uma máxima permanentemente validada pelos
grandes Mestres da espiritualidade.
O que detestares para ti, não o faças ao teu próximo.
Rabi Hillel, sábio judeu do período do segundo Templo de
Jerusalém.
O que não quiseres que te façam, não o faças aos demais.
Confúcio, pensador Chinês.
Que ninguém faça aos outros aquilo que para si seria repugnante.
Mahabharata, texto sagrado hindu.
Só é boa aquela natureza que não faz ao outro aquilo que não
é bom para si própria.
Zoroastro, profeta persa.
Não trates os outros como não gostarias que te tratassem.
Ensinamento budista.
O que é odiável para ti, não o faças ao teu próximo: a Torah
é isto; o resto são apenas comentários.
Talmud.
Não te vingarás nem te irarás contra os filhos do teu povo;
mas amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Pentateuco, atribuído a Moisés.
Nenhum de vocês será um verdadeiro fiel até que deseje ao
seu semelhante aquilo que deseja para si mesmo.
Ensinamento Islã.
Se os teus olhos estiverem focados na justiça, escolhe para
o teu próximo o que escolheres para ti próprio.
Fé Bahá’í.
Se não fores capaz de nutrir e ajudar a ti mesmo, não serás
capaz de nutrir e ajudar os outros.
Índios Norte Americanos.
Assim como te consideras a ti mesmo, considera os outros.
Ensinamento Sikh.
Vê o proveito do teu semelhante como o teu próprio proveito,
e a sua perda como a tua própria perda.
Taoísmo.
Homem, aquilo de que não gostares, não o faças aos teus
semelhantes.
Tradição Africana de Ba-Congo.
Este é o resumo de qualquer dever: não faças aos outros nada
que te magoasse se te fizessem a ti.
Mahabharata 5, 1517
Deveríamos tratar todas as criaturas do mundo como
gostaríamos que nos tratassem.
Mahavira, Sutrakritanga 1,11,33
Não sou nenhum estranho para ninguém e ninguém me é
estranho. Na realidade, sou amigo de todos.
O Siri Guru Granth Sahib, p. 1299
Na verdade, esta insistência permanente numa atitude que
parece ir contra a nossa experiência diária de conflito e desconfiança
constantes em relação a terceiros exige-nos que olhemos para além das
aparências e das diferenças e procuremos encontrar não aquilo que divide mas o
que une todos os seres vivos. E este traço comum – a busca da felicidade e a
fuga ao sofrimento – foi já há largos milênios identificado por todos os
grandes Mestres da humanidade.
E é isto que a compaixão nos exige. Que nos coloquemos
permanentemente no lugar dos outros quando com eles interagimos. Que tenhamos o
máximo cuidado em nunca provocar qualquer sofrimento desnecessário e que
procuremos ser sempre gentis e corteses.
Na verdade, existem dois motivos distintos que dificultam a
prática da compaixão: a desconfiança e o orgulho pessoal.
Não é fácil assumir uma postura compassiva em relação a
pessoas que não conhecemos ou de quem desconfiemos (com ou sem razão) que nos
querem mal. Achamos que se o fizermos, estaremos a colocar-nos, ou aos nossos
próximos, desnecessariamente em perigo. Ora, a compaixão não implica qualquer
tipo de postura ingênua ou tonta em que abrimos a nossa casa ou confiamos os
nossos filhos a pessoas pouco recomendáveis. Significa apenas que nos abstemos
de ferir ou magoar terceiros sem justificação e que estamos dispostos a ser
amáveis e prestáveis com todos, sem ódios nem calculismos.
Relembramos aqui um episódio ilustrativo desta situação que
teve lugar durante uma entrevista com o Dalai Lama. O jornalista perguntou,
talvez em tom provocador, o que faria ele caso se encontrasse com uma pistola
na mão junto a um sequestrador que ameaçasse matar uma família. Ele respondeu
que provavelmente daria um tiro na perna ao assaltante para o deter e depois
far-lhe-ia uma festinha na cabeça. Isto significa que, por vezes, a vida exige
que tomemos posições agressivas e até violentas. Mas podemos fazê-lo sem ódio,
maldade ou ressentimento. Fazêmo-lo porque era necessário e com o menor grau de
violência possível. O problema com o exercício da agressividade não reside na
agressividade em si que, por vezes, poderá ser inevitável. O problema reside
nos sentimentos de ódio, de rancor, de ressentimento a ela associados que
conduzem, frequentemente, ao abuso e ao excesso.
Outro obstáculo à prática da compaixão reside no orgulho
pessoal, na arrogância, no excesso de amor-próprio. Por vezes, criamos de nós
próprios uma imagem de uma certa superioridade, dureza ou formalismo que temos
dificuldade em superar. Essa imagem torna-se um traço da nossa personalidade e
julgamos que a prática da compaixão poderá por em causa essa auto-imagem e
levar-nos a cair no ridículo, no vexame, na humilhação, no vazio. Esta é, na
verdade, uma das grandes armas que o ego tem à sua disposição. Ao longo da vida,
vamos construindo uma determinada imagem de nós próprios que, com tempo, se
consolida, se cristaliza e se torna quase impossível de alterar. Nós somos
aquilo e não haverá qualquer hipótese de mudar, sob pena de deixarmos de ser o
que sempre fomos (pensamos nós). Sentimos que, se o fizermos, corremos o risco
de perder a nossa identidade e de nos desautorizarmos perante os outros. É essa
imagem que orienta a forma como reagimos aos problemas, às ameaças, aos
imprevistos. Sem ela, perdemos a nossa bússola existencial e não sabemos como
agir. Esta é uma ameaça que o nosso ego se esforça para que pareça bem real.
A casca do ego é de uma rigidez implacável. Todos nós já
passamos certamente pela experiência de termos de abdicar de certos
comportamentos e atitudes defensivas que parecem deixar-nos expostos e
indefesos perante os outros. É como se o nosso universo desabasse e nos
encontrássemos nús perante o mundo. A humilhação e o sentimento de impotência
são frequentemente insuportáveis e traumatizantes. Do ponto de vista
comportamental, o ser humano é um pouco como o ouriço-cacheiro. Mal pressente a
mais pequena ameaça fecha-se profundamente e assume uma postura violentamente
defensiva.
Na verdade, qualquer mudança, profunda ou superficial, exige
sempre um esforço de adaptação. As falsas mudanças em que tudo fica
praticamente na mesma não são mudanças, são fraudes que praticamos sobre nós
próprios. É necessário que nos convençamos que a espiritualidade “light ou low
cost” não existe. As profundas transformações que temos de fazer no nosso
interior para atingirmos uma prática perfeita do Altruísmo, da Compaixão e do
Desapego serão lentas e dolorosas. Não é com queima de incenso, o uso de roupas
exóticas ou a prática de abraços gentis que o processo de transformação pode
decorrer. Ele exige dois requisitos fundamentais para que possa ter êxito:
– Que tenhamos uma real consciência dos passos a dar e dos
esforços a desenvolver;
– Que exista uma real determinação, perseverança e firmeza
na prossecução dos objectivos definidos.
Todas as escolas, movimentos ou “mestres” que proponham o
contrário ou que nos tentem convencer que apenas temos de mudar de roupa, de
queimar incenso, de termos pena de nós próprios, de nos amarmos muito, de
lermos a aura ou conviver com os anjos para caminharmos rumo à espiritualidade
serão, na melhor hipótese, fraudes piedosas, ou, na pior, burlões mais ou menos
sofisticados ou descarados.
Alguns Mestres chamam aos seus discípulos “Guerreiros da
Luz”. E, quando estes Lhes perguntam qual o inimigo a conquistar, os Mestres,
simplesmente, oferecem-lhes… um espelho.
Fonte de Publicação:http://www.melhorconsciencia.com.br/page/2/
Nenhum comentário:
Postar um comentário